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Por Stênio Miranda, médico, ex-secretário de Saúde de Ribeirão Preto e ex-presidente do COSEMS/SP
Embora apresente resolução espontânea na grande maioria dos casos, retornando o doente a suas atividades habituais em prazo de alguns dias, a dengue ocasiona consideráveis transtornos, tanto para o indivíduo que a sofre, quanto para a coletividade. Há comprometimento do estado geral, dores intensas, indisposição extrema, alterações funcionais de órgãos e sistemas, impossibilidade para o trabalho e para outras atividades. Serviços de saúde são exigidos em seus limites, pois a intensidade do quadro clínico obriga o doente a buscar atendimento duas a três vezes, em média, quando não há evolução complicada. Pessoal qualificado, medicamentos, medidas de suporte, leitos de enfermaria, leitos de terapia intensiva, são recursos custosos e necessários para a assistência adequada e bem sucedida, protetora da integridade e da vida das pessoas atingidas pela doença.
Trata-se de doença provocada por uma família de vírus, obrigatoriamente transmitidos aos seres humanos por um inseto, o mosquito Aedes aegypti, que utiliza o sangue humano para completar seu ciclo reprodutivo. Admite-se que o Aedes aegypti seja originário da África, tendo atingido ao continente americano no período de colonização pelos europeus. Aqui ele adaptou-se extraordinariamente e é encontrado em todos os países, exceto no Canadá. O ambiente urbano, pelas condições de concentração humana e pela existência farta de depósitos de água, onde se dá a eclosão dos ovos postos pela fêmea, tornou-se notavelmente propício à adaptação e à perpetuação do mosquito.
O vírus da dengue foi reintroduzido no Brasil no final da década de 80 do século passado e desde então esteve presente todos os anos em todas as regiões do país, assumindo o caráter de um agravo endêmico, com sazonalidades epidêmicas. Passados mais de trinta anos, o comportamento da endemia tornou-se fartamente conhecido e previsível, permitindo o estabelecimento de estratégias de controle e assistência, com o objetivo de evitar o adoecimento e suas complicações, especialmente o óbito. Esse conhecimento nos confere a possibilidade de estabelecer algumas proposições relativas à epidemiologia da endemia e às medidas para abordá-la. São elas, resumidamente:
A circulação do vírus é permanente, havendo registros de casos de dengue todos os meses do ano. Essa incidência, contudo, é heterogênea, tanto na distribuição temporal quanto na espacial. Cronologicamente, o número de casos concentra-se nos primeiros meses do ano, quando são mais altas as temperaturas e maior a ocorrência de chuvas, fatores que favorecem amplamente a velocidade de reprodução do vetor, que chega a ser sete vezes maior que em períodos de seca e de temperaturas mais baixas.
A observação do número de casos segundo a semana epidemiológica a partir do final do mês de outubro ou início de novembro permite fazer projeções para o possível quadro epidemiológico a ser configurado nos meses de maior incidência do ano seguinte. Assim, quando o número de casos passa a duplicar ou triplicar naquelas semanas, a incidência adquire uma dinâmica tal em que seu crescimento se faz na ordem de progressão geométrica.
Nesse ritmo, o número de casos aumenta muito rapidamente em janeiro e fevereiro, atingindo proporções epidêmicas naqueles meses e prosseguindo com aumento exponencial em março e abril. A partir de maio, com a mudança do regime pluviométrico, com o possível esgotamento de população suscetível à cepa viral circulante, e sendo mais amenas as médias diárias de temperatura, há menor presença do vetor no ambiente e o número de casos declina rapidamente nos meses subsequentes, ainda que a circulação do vírus permaneça.
Quando o ritmo de elevação de casos em outubro/novembro é menos intenso, é possível prever uma temporada menos agressiva da endemia, muitas vezes sem que se atinja o limiar epidêmico;
Esse ritmo regular, registrado nas séries anuais das última três décadas, permite planejar com eficiência as ações de assistência e as de controle ambiental, que devem sempre ser associadas, adotadas harmonicamente e complementarmente. As ações de controle ambiental, importantes para reduzir a presença do vetor, para mapear sua distribuição no território, para identificar a cepa viral que circula predominantemente em determinado ano, devem ser planejadas e executadas durante todo o ano, sem interrupção.
Ocorre, no entanto, que quando a epidemia se estabelece e o número de casos cresce em ritmo exponencial nos primeiros meses do ano, a batalha pelo controle ambiental deve ser considerada superada. O vetor venceu as ações mitigadoras, reproduz-se de maneira intensa e incontrolável. As ações devem prosseguir, mas sem a ilusão de que será possível eliminar o mosquito e interromper a transmissão em curto prazo. O principal objetivo passa a ser, então, a prestação de assistência de qualidade, para amenizar os efeitos da doença e para preservar vidas.
As complicações da dengue, especialmente a forma hemorrágica, o choque e o óbito, podem ser prevenidas com medidas adequadas de assistência. Existem métodos e ferramentas de diagnóstico e tratamento que permitem identificar precocemente situações clínicas que evoluirão para prognósticos reservados e, assim, adotar em tempo oportuno medidas terapêuticas de compensação e reversão antes que as temidas formas graves se instalem. Atenção a sinais de alarme, que devem ser amplamente conhecidos por todos os integrantes das equipes de assistência, hidratação vigorosa para os casos que apresentem alterações precoces da estabilidade hemodinâmica, monitorização metabólica por exames laboratoriais, especialmente a evolução seriada do hematócrito, reserva de leitos de enfermaria e de uti para os que deles necessitem, são algumas das principais medidas necessárias.
O que deve ser muito bem entendido por todos os envolvidos na assistência, gestores, responsáveis pela regulação de leitos, pelo abastecimento dos insumos, por médicos, enfermeiras, equipes técnicas das unidades, é uma formulação muito simples: NÃO SE ADMITE QUE HAJA ÓBITOS POR DENGUE! E, de fato, é inadmissível que ocorra um único óbito por uma doença bastante conhecida dos serviços de saúde, cujas complicações podem ser previstas por medidas baratas e acessíveis de monitorização clínica e cujo tratamento precoce é, ele também, de custo baixo e plenamente acessível.
A ocorrência de um único óbito nessas condições representa, além de tragédia individual e familiar, uma derrota vergonhosa, humilhante, para gestores e profissionais de saúde envolvidos com a assistência aos doentes. Por isso deve ser estabelecido um compromisso rígido, inegociável, entre todos, para que não ocorram óbitos por dengue. A meta de zero óbitos por dengue é viável e já foi obtida em países devastados pela epidemia.
No ano de 2022 verificaram-se, no estado de São Paulo, 0,84 óbitos para cada mil casos notificados e confirmados, uma incidência inaceitável de quase um óbito por mil casos. Foram 287 óbitos para 322.100 casos. Nada há que justifique esses dados.
Sabe-se que a gestão do SUS é realizada pelos três entes federativos, União, estados e municípios, todos com responsabilidades irrecusáveis na promoção da saúde e prevenção de doenças. Não é possível que, na vigência de uma epidemia em que dezenas de milhares de ocorrências são registras ao longo de três a quatro meses, imagine-se que a assistência seja atribuição exclusiva dos municípios. Não é possível que um dos entes federativos exima-se de responsabilidades alegando que sua função é apenas dar apoio técnico para as ações de controle ambiental.
É fato que os municípios encarregam-se diretamente da prestação de serviços de assistência. Mas eles precisam de apoio, especialmente financeiro, e não apenas técnico, pois seus serviços são subitamente sobrecarregados por solicitações que superam em muito suas capacidades habituais. É necessário contratar profissionais que reforcem as equipes de assistência, adquirir insumos em quantidades muito maiores que as de rotina, contratar leitos hospitalares e de terapia intensiva, o que exige mobilização extraordinária de recursos financeiros, sobrecarregando intensamente os orçamentos municipais.
Tal sobrecarga atinge todos os municípios em situação epidêmica, independentemente de seu porte. Municípios menores, de orçamento menos robusto, sentem imediatamente o impacto. Municípios maiores, supostamente com mais recursos, são também ameaçados pois apresentam proporcionalmente maior número de casos, mais casos graves e, adicionalmente, recebem pacientes dos municípios vizinhos. E nas fases de epidemia de dengue, os demais agravos à saúde da população seguem ocorrendo, e devem ser abordados e resolvidos pelos serviços de saúde.
Cabe lembrar, ademais, que a repartição de financiamento das ações e serviços de saúde onera desproporcionalmente os municípios, que destinam, em média, mais de 25% de seus recursos para essa finalidade, muito além do mínimo constitucional de 15%, e não poucos municípios superam os 35%, o que indica que eles já operam nos limites de suas possibilidades orçamentárias. União e estados mantém-se nos limites dos respectivos mínimos constitucionais, situação que obriga os municípios a comprometer políticas públicas relevantes para garantir a continuidade de seus serviços de saúde.
Por todo o exposto, não é razoável que União e estado eximam-se de responsabilidades no financiamento das ações e serviços extraordinários necessários para fazer frente à epidemia. Não é razoável a alegação de que já fazem sua parte oferecendo apoio técnico aos municípios. Durante a fase epidêmica o apoio técnico às ações de controle ambiental perde significação. A ênfase deve ser o atendimento às pessoas que adoecem, para reduzir danos e preservar vidas. E, em observância aos princípios do SUS, os três entes federativos devem contribuir para que as ações de assistência sejam executadas com qualidade e eficiência, garantindo o objetivo de que não haja óbitos por dengue, nenhum óbito pela doença.
O registro vexatório de quase um óbito para cada mil casos confirmados deve-se, em grande parte, à omissão da União e do estado no suporte financeiro aos municípios, que tiveram que organizar e executar ações extraordinárias por sua própria conta o que, muitas vezes, significou insuficiência para obter e oferecer os melhores e mais eficientes recursos humanos e técnicos. É imperativo que União e estado compartilhem com os municípios o ônus financeiro representado por uma epidemia nas proporções em que se dão as epidemias de dengue.
Vejamos: para cada caso confirmado há pelo menos um que não se confirma, seja porque a pessoa apresentou sintomas e não retornou para realização do exame confirmatório, ou porque o exame foi feito em momento incongruente com a janela de positividade, ou ainda porque pode haver falha na execução do exame e emissão de resultado falso negativo, ou porque não se tratava de dengue. Não obstante, essas outras trezentas mil pessoas que não obtiveram a confirmação do diagnóstico de dengue solicitaram os serviços de saúde, realizaram exames (sorologia, hemograma, enzimas hepáticas etc), receberam tratamento (hidratação, analgésicos, antitérmicos), permaneceram em observação em unidades de saúde e, às vezes, até em leitos hospitalares. Tudo isso representa um custo para os serviços, um custo que não é pequeno, não é desprezível, o que significa que os municípios paulistas suportaram, praticamente sozinhos, os custos de atendimento, diagnóstico, tratamento, internação de quase setecentas mil pessoas no ano de 2022. Quanto isso representa em valores financeiros? Em quanto isso onera um município de pequeno ou médio porte, que já destina trinta, trinta e cinco por cento de seu orçamento para o custeio de suas ações e serviços de saúde habituais?
O adequado controle da dengue, nas condições atuais, isto é, de presença do vetor em todos os municípios do estado, de circulação perene do vírus, e na ausência de uma vacina efetiva e segura que possa ser utilizada em escala populacional, deve se sustentar em quatro pilares:
A observância estrita dos princípios do SUS, universalidade, integralidade e equidade, na organização e na execução de controle ambiental, da prevenção e da assistência aos doentes;
A atuação conjunta, integrada, colaborativa, entre as áreas de vigilância em saúde (vigilância epidemiológica, vigilância ambiental, vigilância sanitária) e de assistência (atenção básica, urgência e emergência, atenção hospitalar). É mandatório que o histórico e prejudicial distanciamento entre vigilância e assistência seja superado na formulação de planos de contingência e na execução prática das ações. O comando será sempre do gestor principal, que deve promover constantemente a aproximação entre as duas áreas;
A proposição e adoção de metas para as diferentes fases (epidêmica e inter epidêmica) e de instrumentos para avaliação permanente do cumprimento dessas metas e de correção de rumos, quando necessário. A principal meta, conforme já argumentado, será sempre a de ZERO ÓBITOS POR DENGUE. É uma meta possível, viável, desde que todos os envolvidos estejam comprometidos com ela e a persigam incansavelmente.
A cooperação permanente entre os três entes federativos em relação a suporte técnico, operacional e financeiro para as ações de controle ambiental, de vigilância epidemiológica e de assistência aos que adoecem. União e estado devem colaborar com os municípios na proposição e realização de atividades de educação continuada, na forma de cursos breves, treinamentos, vídeos instrucionais, treinamento em serviço, elaboração e implantação de protocolos assistenciais atualizados anualmente, e outras, com ênfase nas características epidemiológicas da doença, nas características clínicas e evolutivas, nos sinais de alarme, na interpretação correta dos exames laboratoriais, na adoção de condutas adequadas ao grau de complexidade clínica de cada caso, de cada pessoa. Cabe também à União e ao estado prover aporte financeiro aos municípios agravados pela epidemia, sendo as transferências pactuadas nos espaços interfederativos de gestão (CIRs, CIB, CIT).
Considerar que o papel da autoridade sanitária restringe-se às ações de controle do vetor da dengue é um grave e deletério equívoco. Impede a correta organização e execução de serviços de assistência, resulta em óbitos evitáveis, e, nas fases epidêmicas, em que o controle é impossível, induz a uma inominável hipocrisia por parte dos que sugerem que a culpa pelo desastre sanitário é da população, que deixou acumular água em seus vasinhos de plantas. Nada mais patético!