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O entrevistado desta edição é o médico psiquiatra, doutor em Ciências Sociais e professor de Saúde Coletiva na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Marcelo Kimati Dias. No bate-papo a seguir, ele analisa os desafios para a criação de uma rede de cuidados em saúde mental num período de pós-pandemia e opina sobre os cuidados de base territorial e comunitários, que podem ser implantados na Atenção Básica. As respostas do especialista foram editadas em razão do espaço limitado e a íntegra da entrevista está disponível no site do COSEMS/SP. Confira!
COSEMS/SP: Quais as estratégias o senhor considera viáveis para os municípios avançarem na construção de uma Rede de Cuidados em Saúde Mental num período de pós-pandemia, desfinanciamento, crescente privatização e volta do modelo centrado no hospital e no cuidado uniprofissional?
Marcelo: A Rede de Atenção Psicossocial sofre há mais de quatro anos um progressivo desfinanciamento proporcional. Isso significa que o percentual de gastos em saúde destinados à área tem diminuído progressivamente nos últimos anos. Da mesma forma, os valores repassados aos municípios pelo Governo Federal não têm ajuste proporcional à inflação. Os dados não são claros, uma vez que há cada vez menos transparência nas informações de financiamento federal, mas, de um ideal de 5 a 6% do orçamento de saúde, chegamos em 2020 a valores inferiores a 1,5%. Esta diminuição, aliada à reforma trabalhista, leva os municípios a encontrar saídas de barateamento de contratação de recursos humanos, o que invariavelmente se reflete em vínculos precários, mal remunerados e, como consequência, na troca frequente de quadros de trabalhadores, o que prejudica a capacidade dos serviços em estabelecer e manter vínculos terapêuticos. Por se tratar de um modelo em processo de implantação, pouquíssimas redes de atenção em saúde mental possuem um dimensionamento adequado. Isso significa que o número de habitantes cobertos por um serviço é, via de regra, muito maior do que o desejável. Assim, a diminuição do financiamento impede a expansão da rede e, ao mesmo tempo, faz com que os serviços fiquem superlotados, diminuindo muito a capacidade de atuar em rede (por exemplo, desenvolvendo ação de apoio matricial), de funcionar com porta aberta e, principalmente, desenvolver projetos de atenção a usuários em crise. Nesse contexto, a rede como um todo tende a lançar mão de modelos que deveriam estar sendo definitivamente superados, aumentando a importância dos hospitais psiquiátricos na rede. Outro desdobramento é a dificuldade das equipes em atuar de fato como equipes serviços superlotados tornam mais difíceis reuniões para discussão de casos, ajustes de processo de trabalho. Isso também faz com que modelos a serem superados ganhem cada vez mais espaço, no caso, com organização das práticas institucionais com base no diagnóstico médico, e não em projetos terapêuticos multidisciplinares. A solução é política: melhorar o financiamento, criar processos de indução de ampliação da rede de atenção e fomentar modelos de contratação mais estáveis, considerando ainda um piso para trabalhadores de saúde mental.
COSEMS/SP: Quais cuidados de base territorial e comunitários podem ser implantados na Atenção Básica para o cuidado em saúde mental pós-Covid?
Marcelo: A condução desastrosa da pandemia no país criou uma gigantesca demanda assistencial, que crescerá ainda mais ao longo de 2022. Usuários do sistema foram desassistidos, gerando inúmeras situações de piora clínica. As unidades de saúde vêm sendo progressivamente sobrecarregadas com casos de sofrimento mental decorrente de luto, vivências traumáticas, sequelas cognitivas e afetivas de infecções por Covid-19. Durante a pandemia, houve um aumento importante no uso e prescrição de psicotrópicos, que são dispensados com pouquíssimo critério e sem reavaliação ou plano de tempo de uso. Isso provoca uma epidemia de uso de psicotrópicos e desenvolvimento de dependência, o que tende a se tornar uma verdadeira tragédia na saúde pública brasileira. Vejo uma verdadeira urgência na qualificação de prescrição de psicotrópicos, em especial na Atenção Primária, desenvolvimento de ofertas de promoção de saúde mental e uso racional de antidepressivos e ansiolíticos. Entretanto, as corporações médicas e associações de psiquiatria são totalmente alheias ao debate. No caso das últimas, há ainda uma proximidade financeira histórica com a indústria farmacêutica, que lucrou muito com esse cenário que descrevi ao longo da pandemia. Complementando o cenário, a Associação Brasileira de Psiquiatria tem uma adesão irrestrita ao governo atual, indicando quadros de gestão e ameaçando recorrentemente a política de saúde mental baseada na reforma psiquiátrica. Os danos causados por esse cenário demandarão muitos anos para sua reversão.
COSEMS/SP: Como evitar a tendência de patologização e medicalização que já enfrentamos?
Marcelo: A psiquiatria é a área da medicina em que a patologização se tornou mais profunda. Entretanto, é um fenômeno contemporâneo extremamente complexo e tem múltiplos eixos. Esse aprofundamento se deu com a criação de manuais diagnósticos, que não se baseiam em modelos teóricos explicativos, mas em achados epidemiológicos pautados na resposta de sintomas a medicamentos, o que tende a tornar a análise do comportamento e experiência humana terrivelmente superficial. Como exemplo, gosto de citar o termo ansiedade. As ciências ligadas à saúde mental a identificam como uma resposta a situações de enfrentamento e de risco, ou seja, constitui uma experiência humana que remete à relação com situações, com o outro e com a própria biografia. O modelo atual dá ao termo um significado em si como uma explicação para sensações de incômodo, manifestações físicas e sensações de falta de ar. A psiquiatria contemporânea diz: “se você tem falta de ar, taquicardia, tremor, a explicação é ansiedade”. A psiquiatria, que foi pouco a pouco desconstruída como modelo interpretativo, dizia: “se você tem ansiedade, isso remete às suas relações, seus conflitos e sua história”. O processo de patologização exclui o contexto, a história e o sujeito do sofrimento mental, criando um fenômeno “solto”, que tem sentido em si e demanda uma intervenção no sentido de anulá-lo. Entre os inúmeros desdobramentos, quero salientar dois pontos que tornam o fenômeno mais complexo e danoso. O primeiro é que fornece um modelo explicativo (ainda que não explique nada) de fácil consumo e superficial que se adequa ao modelo de interação social contemporâneo, o que fez com que se incorporasse naturalmente à cultura ocidental. O fato de invariavelmente se vincular a uma intervenção medicamentosa torna o modelo mais absorvível e adequado ao universo de consumo crescente. As categorias médicas dão “explicações” ao sofrimento humano, sem tocar nas relações sociais ou história das pessoas, tornando-se uma espécie de fast-food. O segundo ponto é que a psiquiatria como um todo se alinhou incondicionalmente ao modelo ainda que nas últimas décadas tenhamos evidências de problemas no uso indiscriminado de psicotrópicos. Nosso conhecimento sobre o efeito dessas substâncias é insuficiente e teremos de lidar com uma epidemia iatrogênica gigante nas próximas décadas. O fenômeno é grave, complexo, multifacetado e fora de controle. Nossas agências reguladoras devem se aprofundar em sua análise. Não há protocolos de prescrição e não há controle centralizado do consumo de psicotrópicos no país. Se eu fosse apontar o começo de um conjunto de ações para diminuir o impacto vindouro do que a psiquiatria está produzindo hoje, passaria por um controle infinitamente maior de como drogas são prescritas, utilizadas e seu impacto em médio e longo prazo.
COSEMS/SP: Como enfrentar os pedidos de judicialização para internação em hospitais psiquiátricos e ou comunidades terapêuticas?
Marcelo: As comunidades terapêuticas têm um papel crescente em decorrência de processos diferentes. O primeiro é eminentemente político, resultado de uma aliança improvável entre as corporações médico-psiquiátricas e grupos evangélicos dentro do Governo Federal. O segundo é a interrupção da expansão da Rede de Atenção em Saúde Mental, a qual me referi anteriormente. Em terceiro, uma visão equivocada de que o uso de drogas tem de ser tratado exclusivamente com a oferta de abstinência em ambientes com baixo acesso a elas, mesmo que de forma involuntária. As demandas judiciais devem ser enfrentadas com ofertas alternativas, de cuidado em rede, no território de origem e com o diálogo constante com o Judiciário, mostrando a inexistência de comprovação da efetividade dessas instituições especialmente na manutenção de abstinência no longo prazo. Entretanto, enquanto a rede de atenção territorial não voltar a se expandir, alcançando um dimensionamento assistencial apropriado, existirá um movimento de resgate de um modelo que prioriza a internação conforme discuti anteriormente. Não há saída que exclua o fortalecimento político do modelo baseado na reforma psiquiátrica e a melhoria radical de seu financiamento.