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por Stenio Correia Miranda, que integrou a equipe técnica do Departamento de Vigilância em Saúde da SMS de Ribeirão Preto, foi Secretário municipal de Saúde de Ribeirão Preto e ex-presidente do COSEMS/SP
Na passagem do século dezenove para o vinte, o Brasil enfrentava devastadora endemia de Febre Amarela. Ao longo da segunda metade do século estima-se que ela tenha provocado cerca de sessenta mil óbitos, mais de mil por ano. Naquela época o país urbanizava-se, ainda em ritmo lento e pachorrento, e já contava com um grande aglomerado urbano em sua capital, a cidade do Rio de Janeiro, atacada impiedosamente pela doença. Nela concentrava-se o maior número de casos e o maior número de óbitos.
O Rio passou a ser conhecido internacionalmente como “túmulo de estrangeiros” em razão dos casos fatais que vitimaram viajantes que por aqui aportavam. Navios de outras nações passavam temerosos ao largo da antiga capital, sem ancorar.
O Presidente Rodrigues Alves, que governou de 1902 a 1906, nomeou o médico Oswaldo Cruz para responder pela Diretoria Geral de Saúde Pública, repartição precursora do atual Ministério da Saúde. Oswaldo Cruz sucedeu uma geração de médicos de formação ultrapassada que relutava em admitir as evidências trazidas por Pasteur a respeito da importância etiológica dos microrganismos na manifestação e na transmissão de doenças. Apoiado nas evidências científicas mais avançadas da época, e em oposição aos céticos, muitos deles médicos de prestígio acadêmico e social, propôs a eliminação do mosquito, o mesmo Aedes aegypti que ainda hoje nos atormenta, como estratégia para controle da doença. Ainda não se dispunha da vacina, que apenas foi utilizada a partir de 1937. Em dois anos de intenso trabalho (e de feroz e obtusa oposição) as ações levaram ao objetivo pretendido: reduzir a população de mosquitos até vencer a endemia. A Febre Amarela urbana passou a segundo plano no mapa epidemiológico do Rio de Janeiro e do Brasil. A partir de 1942 até os tempos atuais não mais se registraram casos de ciclos urbanos da doença.
Apesar dessa história de sucesso no controle de uma doença grave por seu alto índice de letalidade (metade dos doentes vai a óbito por insuficiência hepática e/ou renal aguda, muitas vezes fulminante), vivemos hoje situação inusitada, de presumido risco de reintrodução do ciclo viral em grandes centros urbanos. Desde dezembro de 2016 há persistente epizootia (casos constatados em primatas silvestres) em áreas periurbanas e manifestação da doença em humanos que habitam ou frequentam essas áreas, com crescente número de óbitos. Ainda não há ciclo urbano da doença, mas sua possibilidade é temida por todos.
A avaliação epidemiológica da ocorrência de epizootias e de incidência da doença em humanos indica claramente uma expansão gradativa das áreas de circulação do vírus e sua aproximação de grandes centros urbanos que, diga-se, estão fartamente infestados pelo Aedes aegypti, um dos vetores do vírus da Febre Amarela. São fatores que oferecem condições para a reintrodução do ciclo viral em ambiente urbano.
Outros fatores, no entanto, dificultam esse prognóstico. Considera-se, por exemplo, que a quantidade de Aedes aegypti existente nas cidades não é suficiente para sustentar o ciclo de transmissão do vírus, sendo curto o período de viremia em seres humanos, quando ocorre a transmissibilidade para o vetor, e dele para pessoas suscetíveis. Além disso, dispõe-se hoje de um poderoso instrumento de barreira à circulação viral, a vacina, de alta eficácia e que estabelece imunidade permanente contra o vírus.
A reemergência da Febre Amarela não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Observa-se quadro muito semelhante, de aumento do território de circulação do vírus e de ocorrência de ciclos urbanos no continente africano, havendo, nos últimos anos, migração da doença da África Ocidental para a Central e Oriental. Admite-se que o novo cenário decorre de fatores ambientais, como o desmatamento e a ocupação urbana de áreas de antiga cobertura florestal, que favorecem a aproximação de animais de vida silvestre às cidades, e o aquecimento global, que interfere com o regime de chuvas e propicia a reprodução em larga escala dos vetores. Acrescentam-se a eles fatores socioeconômicos, como o agravamento dos já acentuados níveis de desigualdade sócio-econômica e obstrução de acesso a meios de subsitência e a serviços essenciais (saúde, educação, saneamento urbano, moradia etc) para segmentos cada vez mais amplos das populações de países latinoamericanos e africanos.
As responsabilidades e a missão do gestor público de saúde são fundamentais para que o desafio proposto pela reemergência da Febre Amarela seja enfrentado, controlado e superado. É necessário que os gestores atuem em quatro grandes frentes, necessariamente articuladas, equilibradas e sincrônicas. São elas:
(a) o público interno dos serviços públicos de saúde, gestores e profissionais que participam diretamente das ações de prevenção, controle e assistência;
(b) público externo específico, constituído pelos profissionais de saúde em geral, atuantes no campo público, privado ou suplementar, que podem desempenhar função de alta relevância em transmitir as informações produzidas pelas autoridades sanitárias;
(c) o público externo em geral, que tem o direito à informação completa e objetiva, para correta compreensão dos fatos e adoção de medidas pessoais e coletivas de prevenção da doença e evitação de situações de risco.
Exemplos singelos dos efeitos deletérios das deficiências de comunicação são:
Para uma comunicação eficiente, a informação deve receber tratamento adequado em sua produção, em sua distribuição, em sua circulação e no consumo por quem vai utilizá-la. De nada adianta produzir informação de qualidade se seu destinatário não a recebe, ou não se dá conta de que ela lhe diz respeito.
É fundamental instituir uma central de comunicação responsável por coligir os dados e mensagens consideradas significativas e oportunas e por sua distribuição para outros centros regionais e locais de comunicação. É necessário que haja uma fala única, tanto pela União quanto pelo estado e pelos municípios, para que não ocorram conflitos de informações, que provocam desorientação da população e descrédito da autoridade sanitária.
O Oswaldo Cruz do século vinte e um não será um jovem médico convicto de seus objetivos e rigoroso em seus métodos científicos. Será um coletivo de gestores, profissionais, trabalhadores da saúde e cidadãos, que também devem compreender que o modo de viver em sociedade, a sua relação com a natureza, são fatores determinantes na exposição ao risco de moléstias transmitidas por vetores, e assim não permitir que a Febre Amarela volte a nos ameaçar.
Vivemos hoje uma situação de risco, mas longínqua de qualquer descontrole ou da iminência de epidemias urbanas. No entanto, a perda de uma única vida por doença que estava controlada e para a qual se dispõe de vacina altamente eficaz, representa uma derrota para todos nós, autoridades sanitárias, profissionais de saúde, brasileiros em geral. Tais óbitos são inaceitáveis e devemos organizar nossos serviços, unir nossas forças e capacidades para trabalhar com uma única meta: NENHUM ÓBITO POR FEBRE AMARELA!
Agradecimento: à enfermeira Dra. Luzia Márcia Romanholi Passos, Diretora do Departamento de Vigilância em Saúde da SMS de Ribeirão Preto, pela gentileza da leitura do texto a apresentação de valiosas sugestões de natureza técnica e de redação.