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Entrevista completa para o Jornal do COSEMS/SP – Edição 207
O médico epidemiologista José Cássio de Moraes, 75 anos, fala com autoridade sobre campanhas de vacinação no Brasil. Referência nesse quesito, em 1975 realizou a campanha de vacinação da população contra meningite, a primeira em nível nacional. Professor adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de SP (FCMSCSP), foi um dos organizadores do Programa Nacional de Imunização (PNI), do Ministério da Saúde e atualmente é membro do Observatório Covid-19. Nesse bate-papo, detalha os desafios da campanha de vacinação de Covid-19 e comenta a politização do tema
JC – Qual a análise que você faz a respeito da condução da campanha de vacinação da Covid-19 no Brasil e no Estado de São Paulo?
Moraes: A questão da imunização teve contratempos desde o início com o processo de politização da vacina, o que enfraqueceu bastante o início do Programa Nacional de Imunização. Não houve consenso e nem um bom relacionamento entre o Governo Federal e as esferas estaduais e municipais, criou-se uma anarquia no processo. Devido à escassez de vacina, foi necessário intensificar os grupos prioritários as pessoas mais propícias como os profissionais de saúde e a população com maior risco de morte, que são os maiores de 65 anos. Na medida que esse grupo seria imunizado com as duas doses, podíamos retroceder, para outros grupos. Como não houve uma homogeneização, os estados e municípios começaram a introduzir diferentes priorizações. Alguns estados e municípios, ao invés de guardarem a vacina para a segunda dose, resolveram antecipar a primeira dose. Aí pode acontecer de ter falta de vacina, que é o que está acontecendo no estado de São Paulo hoje! Com isso, começa a ter uma invasão da população nos municípios que estão à frente e uma evasão dos que estão mais atrasados, o que prejudica o cálculo da cobertura vacinal nos dois municípios, porque um vai ter a cobertura muito alta e no outro, uma cobertura baixa. Isso dificulta bastante a fazer o cálculo da cobertura vacinal, porque não é só importante o valor médio, não adianta eu ter de média 80% de cobertura, se eu vou ter um município com 100% e outro com 60%. Para ter imunidade coletiva precisa de duas coisas: um alto patamar e homogeneidade da cobertura.
JC – O que poderia ter sido recomendado e deve ser ponto de atenção para os gestores?
Moraes: A ideia é que se discuta nas bipartites um calendário de vacinação a ser seguido para que tenha uma maior homogeneidade dos grupos. Isso seria o ideal! O segundo seria ter uma capacidade dos municípios para, de fato, ele analisar a sua cobertura vacinal, porque o município precisa disso no dia a dia. Como por exemplo o sistema do PNI-DATASUS, que analisa por vacina, por dose, por idade e etc…é algo bem simples de se fazer e tem uma segurança sobre a cobertura. Evitar fazer ranking de quem vacina mais, quem vacinou menos. Quando se vê a vacinação da influenza, não tem nada dessa discussão, nenhum município fez uma vacinação diferente da estabelecida no plano, porque teve um processo de discussão. Mesmo em 2009, quando teve a pandemia de H1N1, não teve essa anarquia. Se conseguiu segurar e homogeneizar a cobertura vacinal, porque havia um diálogo entre os três níveis de gestão: federal, estadual e municipal. É isso que está faltando hoje! A imunidade ficou uma coisa individual, mas precisa ser tratada como coisa coletiva! Se eu não chego a um patamar alto de vacina, de pessoas com duas doses, um determinado indivíduo pode ter uma proteção, mas a coletividade não vai chegar, porque existe essa diversidade.
JC – Já se observa algum impacto da vacinação? Qual?
Moraes: Hoje já tem uma evidência que é a redução dos óbitos e internações da população, principalmente, dos acima de 65 anos. O trabalho publicado pela Universidade Federal de Pelotas, com participação do epidemiologista e reitor Pedro Hallal, demonstra que caiu pela metade as mortes de idosos com mais de 80 anos por Covid-19, após o início da vacinação no Brasil. As outras causas de óbitos permaneceram constantes. Um ponto que deve ser analisado é se essa redução que observamos agora, já se deve devido a nossa cobertura vacinal. É outro assunto que precisa ser explorado, porque pode ser que tenha uma relação com as alterações de cepas ou outros fatores… Mas seguramente, a vacinação mostrou esse impacto. Você teve uma redução importante nos grupos prioritários mais velhos, tanto de internação, quanto de óbito. Isso tem sido observado no mundo inteiro.
JC – Qual a perspectiva de ter que usar doses adicionais nos esquemas atuais de vacinação contra a Covid-19?
Moraes: Esse é um assunto que está sendo estudado em todo o mundo. Se terá a necessidade de reforçar a imunidade para cobrir melhor as variantes que surgirem. Ou então, como acontece com o vírus da Influenza, que todo ano é produzida uma vacina nova para ser aplicada na população, isso porque o vírus da influenza sofre mutações muito mais rápidas do que o vírus do coronavírus. Esse acompanhamento deve ser feito, porque acontece de precisar fazer mudanças na própria vacina, para que se dê conta das variantes. Agora, antes de pensar na dose adicional, a gente precisa aplicar a segunda dose na população. Não adianta escolher grupos específicos para tomar essa dose adicional, enquanto tem gente que ainda não tomou nem a primeira, nem a segunda… Não é justo!
JC – O que pode ser feito para evitar o fenômeno “sommelier” que está acontecendo de as pessoas escolherem a vacina que irão tomar, e recusando a vacina quando não atende sua expectativa?
Moraes: Primeiro que tem que ter um bom processo de comunicação para explicar a qualidade de todas as vacinas. Como houve esse processo de politização da vacina, desde o início teve essa diferenciação entre os imunizantes. Esse tipo de situação fomentou na população uma desconfiança. Depois, ainda teve a divulgação de eventos adversos mais fortes que ocorrem em algumas vacinas. Mas, esses efeitos são comuns para qualquer medicamento, até mesmo ao ingerir uma aspirina é possível ter uma alergia. Por conta das reações da Astrazeneca, as pessoas agora não querem tomar essa vacina. A Coronavac dizem ser uma vacina fraca. A Pfizer é uma das mais cotadas pela população, mas também pode provocar reações como a miocardite. Todas elas podem produzir reações. Milhões de pessoas estão sendo vacinadas, mas um evento super raro de reação, vai acontecer! Mas isso não tira o benefício que a vacina traz. Essa situação que vivemos hoje eu vejo como uma questão política, porque nunca existiu isso com nenhuma outra vacina.
JC – Quais os principais desafios para a campanha de vacinação?
Moraes: Um dos grandes desafios é você ter que estimular as pessoas a irem se vacinar com a 2ª dose, porque existe um diferencial de imunização entre 1ª e 2ª dose. E isso precisa ter uma comunicação que não se baseia somente nos noticiários. É necessário ser feito pelos órgãos federais, estaduais e municipais. Qual a propaganda que você vê do Ministério da Saúde estimulando a vacinação? Qual a propaganda que você vê da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo? Nada! Tem as coletivas de imprensa, mas isso atinge uma parcela baixa da população. É esse tipo de situação que você precisa ter, propaganda para motivar as pessoas. Fazer estratégias extra-muro dos postos de saúde, porque eu conheço uma unidade, que abriu em um sábado e aplicou 60 doses o dia inteiro. Por quê? Porque ninguém ficou sabendo que aquele posto seria aberto no final de semana. A população não está acostumada, isso depende de divulgação. Só quando estender a cobertura vacinal no País, com a população vacinada com 2ª dose e quando tiver um estoque de vacinas, já fisicamente no território, é que se pode discutir um pouco a questão da redução do intervalo. Não é justo reduzir o intervalo de uma vacina que você tem um certo prejuízo da imunidade e deixar de vacinar as pessoas com a 1ª dose.